Sobre passos de silêncio



Em direção ao trem dei conta que são os objetos e as paisagens as únicas a testemunhar a nossa transformação. O mesmo muro de quando passamos, observa a gente em diferentes formas no tempo, esboçando diversas tonalidades de humor. O silêncio que incomoda, torna-se o elo perfeito para alcançar a nossa existência. Fugir da inércia do pensamento rotineiro é necessário, se não viramos parasitas do relógio. Hoje, vejo que não sou o mesmo de outrora. Obrigado universo.

35ª Amostra de Cinema de São Paulo


Shocking Blue, Holanda, 2010

Há principio ao ler a sinopse podemos imaginar que se trata de mais uma história sobre adolescente com apenas uma diferença das demais, dessa vez é vista sobre o panorama Holandês (país realizador). No entanto, Skocking Blue tem a dose necessária de poesia, eficiência cinematográfica e realidade que desarma o telespectador, aproximando-o da atmosfera e ainda conseguindo causar uma identificação com as imagens transmitidas pela tela, isso indefere da nacionalidade. A trama que passa nos campos holandeses acontece a todo instante no asfalto de São Paulo, nas luzes de Paris, nas megalópoles americanas ou na agitada Tóquio, ocorre nos quatro cantos do planeta, porque é uma circunstância natural do adolescente. Circunstâncias pautadas pela insegurança, por sua vez, o que pode influenciar a fase adulta. E os elementos cinematográficos escolhidos para abordar esse tema desgastado e nem sempre debatido com embasamento foram e são o diferencial dessa trama em relação às outras. A narrativa acompanha o amadurecimento do seu protagonista William através de uma vida relativamente pacata entrando em conflito a partir de inúmeros acontecimentos, a fotografia colorida deixa claro o campo de possibilidades dos adolescentes da região através do plano amplo da plantação de tulipas, além de dizer nas entrelinhas que adolescentes são como flores que precisam ser regadas diariamente. Mas a obra pode ser passada por outras releituras, vai além, mostra por meio de uma cena incrível a necessidade da troca e do encontro de dois seres remetendo ao cruzamento de duas distintas flores. No final das contas não há restrições, quando a obra é competente ela viaja em diferentes formas e jeitos, porém é preciso deixar claro que antes das palavras a obra mostrada na tela já diz por si só, causando uma grande experiência para o espectador. Para encerrar vale ressaltar a combinação de uma trilha sonora esperta e atuações naturais fazendo da produção um registro a ser mostrado e estudando a quem possa interessar.

 Mentiras Sinceras, Brasil, 2011

Trata-se da metalinguagem sendo aplicada literalmente, onde o teatro e o cinema trabalham juntos, usam o mesmo espaço, oras se confundem, mas conseguem desenvolver um relato instigante que possa interessar aos consumidores de teatro. Já que apesar de usar o espaço cinematográfico a produção segue uma linha documental que registra a preparação de uma peça teatral chamada Mente Mentira, escrita pelo dramaturgo norte-americano Sam Shepard, reunindo um grande elenco composto por Malvino Salvador, Fernanda Machado, Keli Freitas, Zé Carlos Machado, Roza Groubman, Marcos Martins, Malu Valle, Augusto Zacchi e Thiago Fragoso. O interessante da trama não é só o registro da montagem teatral, mas a temática em si passeando aos quatro cantos da narrativa, abrindo espaço para o quase eterno conflito entre a realidade e ficção que se misturam na pré montagem, nos ensaios, nos depoimentos dos atores, na convivência, levando nosso cérebro a fritar com tanta informação disponibilizada. Porém, o longa metragem ainda funciona mais como um documento registrado de uma peça teatral. Para nós, o público significou entrar na intimidade de uma pré-concepção aplicada no palco.

 Periferic, Romênia, 2010

Ao assistir Periferic aumentei a certeza que a distância é o único argumento que nos difere de outras sociedades, em contra partida sabemos que existem culturas e costumes que guiam o andamento de um povo. Porém se formos fazer uma análise seca veríamos que problemas são todos iguais independentes do território. Esse filme romeno nos leva a uma viagem nas degradações humanas, mas calma, tem o seu fim marcado. Matilda, mulher que, com metade de sua sentença de prisão cumprida, ganha um indulto temporário de 24 horas, na hora de sua saída em diante, a trama ganha fôlego e é pontuada de acordo com as horas que se passam e com o reencontro da protagonista com os três pontos chaves da narração, o seu irmão Andrei, seu ex-namorado Paul e seu filho Toma. Um recurso que vale apena destacar no roteiro é a história ter a profundidade necessária para atrair o público, antes mesmo que ela se inicie, causando e dando poder para o espectador montar o próprio passado da protagonista. Seguindo uma linha real, os atores roubam a cena, rendendo ótimas passagens, um excelente grupo de elenco que direciona as nossas expectativas diante da obra. A forma da condução técnica da produção é aquela tradicional já conhecida em histórias intimistas, a câmera na mão, os planos oras longos, oras close, a fotografia cinzenta aproximando da atmosfera sombria e dramática da história. Mas se tivesse algo a ser elogiado em termos técnicos diria que a montagem rápida (ligeira) e contemporânea dialoga muito bem com a modernidade cinematográfica e talvez seja um dos pontos altos da fita. O diretor Bogdan George Apetri mostrou para seção onde estava que somos (o mundo) mais semelhantes do que parece. 

Namorada, EUA, 2011

Típica produção independente que parece ter sido feita especialmente para integrar festivais de cinema mundo a fora. Com uma gênese alternativa (entendem-se recursos modestos) tão latente que conseguimos notar tamanho espírito nos quatro cantos do longa metragem. Para quem consome o gênero, como este que escreve é um ótimo aperitivo.  Conversando com um amigo, momentos antes da sessão, estive deparado a uma questão colocada pelo próprio que dizia que a história poderia ser muito apelativa por conta de o protagonista ter síndrome de down. Na hora, não obtive a resposta interna para a dúvida, podia ser um elemento funcionando como engrenagem com intuito de atrair o público para uma zona de conforto sentimental, levando-nos para uma falsa percepção. Já dentro da sala: enxerguei a dimensão da realização social que essa produção cinematográfica alcançou através da escolha de um protagonista representando a classe dos portadores da síndrome de down, já não importava qualquer coisa que não assemelhasse a sensibilidade transmitida na tela. Existem certos objetos que merecem ser analisados com outro viés, principalmente quando a generosidade é o fio condutor do seu percurso. No entanto precisam ser pontuados alguns deslizes ao longo da trama, poucos no seu decorrer, mas que não deixem de se percebidos, caso dos cortes que são equivocados em algumas ocasiões, também o roteiro mostrando alguns vazios e clichês no desenrolar da trama. Em compensação como sublinhado acima a atmosfera sensível beirando a inocência e o sorriso sincero do protagonista direcionam o nosso olhar que mostra ser impossível não se emocionar com as cenas em que Evan demonstra o seu sentimento por Candy. Sentimentos por sua vez que guiam o clímax da trama e resulta numa incrível noção de humanidade por parte de nós, o público.



O Palhaço, 2011, Brasil


Uma aula de compartilhamento

Sábio foi quem disse que a infância é a melhor fase do percurso de um ser humano, cá pra nós precisa ser reverenciado o sujeito que disse tamanha verdade. Quando somos crianças temos a ingenuidade de querer avançar os números para nos tornarmos criaturas horripilantes e mesquinhas, que no caso são os adultos. Só depois que crescemos vemos que sentimento assim foi perda de tempo e que o mesmo segue em frente e não volta mais. Vai ver que seja o motivo que me faça contar nos dedos as vezes que pisei no circo. Sempre tive a impressão que o mundo circense estivesse ligado diretamente ao universo das crianças, só que a gente é tão restrito há bobagens insignificantes que deixamos de aproveitar o que a vida tem de melhor a oferecer.

Não seja por isso, como dito, conto nos dedos os dias que pisei no circo e vendo o filme, O Palhaço, do ator e cineasta Selton Mello fui levado a sensações guardadas no passado. Com direito a pipoca e refrigerante e o picadeiro há alguns metros de distância dos olhos, não só acompanhei novamente o espetáculo, como fiz parte da trupe, saindo de turnê com os personagens mais exóticos do imaginário popular.

Selton Mello volta o avesso de sua primeira experiência como diretor, regado de uma leveza necessária e esperta para alcançar o grande público e também mostrando o outro lado do universo sombrio de Feliz Natal com uma fotografia colorida que através dos olhos dos cortadores de cana na primeira tomada avisa que está acessível e não veio sozinho.

O criador pega emprestado o fato recente de seu próprio descontentamento profissional para compartilhar de fundo ao seu personagem BenjamimPalhaço Pangaré, interpretado por ele mesmo, que está sofrendo uma crise de identidade afetando a sua profissão de palhaço. Em paralelo, conhecemos um pouco da rotina da trupe esperança dirigida pelo pai e também palhaço Valdemar Puro Sangue (Paulo Jose) que fazem breves passagens no interior do país.

Entretanto, engano de quem acha que não ira encontrar nenhuma semelhança na fita nova da atmosfera pessimista do primeiro longa metragem , a melancolia vem camuflada nos risos fáceis, sendo mais evidente na quebra de ritmo consciente do sorriso no semblante dentro do picadeiro para a angústia do mesmo nos bastidores. 

Quando notamos que o mesmo protagonista que domina com maestria os risos do seu espectador não consegue sustentar meia hora de diálogo fora do palco, vemos que a trama tem uma função além de nos tirar risadas. Através de dois pontos importantes da narrativa conseguimos não só sentir as dúvidas de Benjamim como transferir para nós, o mesmo dilema de quem sou? E qual é o meu verdadeiro dom?

Pontos narrativos, sendo um deles a personagem de Guilhermina (Larissa Manoela) funcionando como a pessoa que garantiu o ingresso e está acompanhando a história da cadeira do cinema, testemunhando em silêncio cada desdobramento das cenas e o outro ponto é o sonho de consumo do protagonista que é o ventilador, creio eu, que seja livre e possa encaixar-se em diferentes interpretações, a meu ver serve como uma espécie de antagonista florescendo através da vontade material do personagem de possuí-lo, podendo abrir outras portas há não ser o de palhaço. Um futuro aberto, que se fecha quando enfim consegue consumir o seu desejo e enxerga que mesmo com ele pode ser quem sempre foi.

Ao longo do percurso quem agradece é o publico que é presenteado com as diversas participações especiais, garantindo o riso frouxo e sincero da nossa parte, participações que surgem com os nomes de Jorge Loredo (o Zé Bonitinho), Ferrugem, Emilio Orciolo Neto (o melhor momento), Jackson Antunes, Fabiana Karla, Tonico Pereira, Dalton Melo e Moacir Franco (outro momento que merece destaque).

Enfim: O palhaço tem o requinte do cinema francês com toques sutis e trilha sonora usada como agente determinante para as emoções dos atores, o pastelão italiano para trazer o lado cômico da fita e a dose certa de malicia brega e o cenário rural digno e que particularmente remeteu os saudosos filmes dos trapalhões. A história bebe na fonte de muita produção boa por ai mundo dentro e a fora.

Com tantos pontos a favor o que chama atenção, pelo menos a mim chamou, foi à competência do roteiro, a sensibilidade das palavras trazendo a objetividade do desenvolvimento, tudo mostrado sem nenhum rodeio e ainda reservando muita lenha pra queimar nas entrelinhas, com indagações ala Tarantino, principalmente no diálogo dito pelo personagem do Moacir Franco que deixou claro a escrita excelente de Selton e o futuro brilhante de sua carreira (a frente das câmeras).

Para reforçar: boa parte da simpatia da produção foi causa do elenco brilhante, escolhido a dedo. Mas devo dizer que nem os irmãos Mello contracenando juntos e nem Moacir Franco com solo espetacular tiram o brilho da interpretação de Paulo Jose, que longe da sua melhor forma, devido problemas de saúde contínua firme e ainda consegue ser autêntico no seu exercício de profissão, ensinando, emocionando e rendendo o melhor momento do filme pra esse que escreve. Sua habilidade de seguir por outro lado nas resoluções de problemas em uma cena que a principio se dariam da forma tradicional aos nossos olhos, mas que realizados de sua forma singular consegue ganhar mais força e sem dúvidas nos fazem pensar bem mais.  Ver esse cara atuando em qualquer frente da arte não tem preço, tenho certeza disso.

Por fim: sabemos da ordem natural da vida e podemos tirar muito proveito da ficção que acabamos de assistir, gerando reflexão para aplicarmos em nossas próprias vidas.

Obrigado Selton Mello, seu dom e sua necessidade artística nos fazem crer em nossos próprios sonhos.


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